Intro
Essa edição era para ter sido lançada em outubro. Mas não foi. Outubro sempre foi um mês atípico, diferente e por vezes excitante. Sempre aconteceram coisas boas em minha vida profissional nos meses de outubro. Esse ano não foi diferente. Mesmo o mês tendo passado em um piscar de olhos, eu acabei tomando diversas decisões e expandindo muitos objetivos. Para outubro, eu já havia separado esse conto, um conto sobre uma pandemia, um vírus tão mortal que matava todo e qualquer ser vivo. Menos ele.
Esse conto foi publicado em 2007 com o título de Mar Negro, ao ser selecionado no Concurso Panorama FC do B. Como um conto experimental, o personagem não tem nome, é uma sombra que vaga até um destino incerto, em um bloco de texto sem parágrafo, sem corte, sem sossego. Não entrou em outubro, pois me perguntei diversas vezes se tal melancolia merecia ser publicada naquele mês, nesse momento. No final das contas não foi, ficou para um novembro chuvoso, onde novos sopros de esperança vem surgindo no horizonte.
Gabriel Boz
Olhando o mar
Quando ele olhou nos olhos dela, logo depois deles se fecharem pela última vez, sentiu que solidão não era ficar sozinho, solidão era se sentir quebrado, partido, era saber que nunca mais se sentiria completo. Voltou a olhar para frente, em direção ao horizonte perdido daquela estrada sem fim. Depois de passar por centenas de carros parados, batidos, abandonados, percebeu que tinha sido o único a chegar tão longe. Porque ainda estava vivo não sabia, mas não iria deixar que sua mente se preocupasse com isso ainda. O tempo dava voltas, dava voltas há bilhares de anos, e ele sabia que teria muito tempo para pensar sobre aquilo. Voltou a olhar para ela, ouvindo no fundo da mente aquelas últimas palavras, aquele último suspiro na forma de um “eu te amo”, palavras que ele nunca havia acreditado como deveria, até aquele momento. “Venha me pegar”, ela disso. Ele foi acreditando que nada mais importava, que tudo já estava morto. Não estavam fugindo, queriam apenas chegar até o mar. Ela queria chegar até o mar. Voltou a olhar para frente, o céu escurecendo em azul celeste, o vento parecendo uma gaita distante em seus ouvidos. Começou a imaginar se seria o último ser humano na Terra. E ao seu lado, mais um corpo frio. Piscou e ela continuava imóvel. O último beijo ainda tinha sido quente, mas ele nunca havia se dado conta disso, até beijar seus lábios gelados. Continuava dirigindo em direção ao mar, pensando se ela ainda estava ao seu lado, ou se já havia alcançado outras esferas, se adiantaria alguma coisa leva-la até o mar. Nas últimas semanas viu tanta gente morrendo nas ruas, nos hospitais, nas casas, que a morte parecia mais uma dádiva do que uma tragédia. E todos sabiam o porquê. Bastava um espirro, uma tosse mais forte, para que todos se ajoelhassem e começassem juntos a rezar. Ele nunca espirrou ou tossiu, mas havia feito o que prometera durante aquela última ligação. A tinha pego e a levaria ao mar. O que mais poderia fazer? Não havia mais ninguém, os canais de TV emitiam sons dissonantes e faixas coloridas, a Internet era um cadáver estático, lento, imobilizado. Várias horas atrás, sem que ele soubesse, já não era mais acessada por ninguém. Os telefones celulares emitiam mensagens automáticas indicando que o sistema estava fora do ar, ou que não havia ninguém para atender. Até as estações de rádio só transmitiam estática. Ele nunca havia percebido que para que todas estas coisas funcionassem, não bastava só eletricidade. Eram necessárias pessoas. O mundo funcionava a base de pessoas, fazendo coisas, consertando coisas, pensando coisas, ligando e desligando botões. Mas agora não havia mais pensamentos vivos senão os dele. Parou no meio da estrada, os últimos resquícios de luz se esgotando, uma leve faixa laranja sumindo no céu. Quando olhou novamente para ela, pensou ver uma cor viva refletido em sua pele, uma cor quente ao invés daquele frio azul. Parou no meio da estrada sem se preocupar com outros carros, sabia que nenhum iria aparecer. Parou no meio da estrada para dar-lhe um abraço, um abraço que realmente significasse alguma coisa. Naquela estrada vazia, uma linha morta de concreto iluminada por matizes de azul e laranja, envolta por planícies secas, onde o verde do mato não tinha mais cor e apenas se mexia ao sabor do vento frio, naquela estrada vazia ele a pediu em casamento, como deveria ter feito tantos anos atrás. Foi a primeira vez que falou algo tão sincero, pediu desculpas por não ter comprado as alianças, deu-lhe um beijo demorado nos lábios e seguiu viagem. Estava esgotado. Não sentia mais nada além dos batimentos do seu coração. Sentia que era um som proibido diante de tantas mortes. Não sentia as lágrimas escorrendo pelo rosto, não sentia a saliva seca ou mesmo a vontade de urinar, mas acabou tendo de parar em um posto de gasolina, ou não teria como seguir viagem. Entrou no estabelecimento como se pertencesse a ele, sem se importar com os cadáveres caídos atrás do balcão. Pegou um saco de batatas fritas, uma lata de refrigerante, encheu o tanque e voltou para a estrada. Bebeu o refrigerante pensando nos tempos difíceis. Nos lugares que iria visitar até que morresse de velhice. Se ainda não estava doente, não seria agora que ficaria. Imaginava que ainda ia viver muitos anos, comendo enlatados tirados de supermercados vazios, viajando com o que havia restado de gasolina do mundo. Talvez até conseguisse atravessar o oceano em algum navio a deriva. Faria grandes viagens, sem ninguém para amar, sem ninguém para conversar, sem ninguém para saber. Andaria por ossos e roupas rasgadas, dormiria em mansões vazias rodeado de pinturas famosas e inúteis, visitaria ruínas de aço e vidro. Pensou se iria suportar, se o planeta iria suportar o apodrecimento simultâneo de seis bilhões de pessoas, mais os bilhões de animais. Se até mesmo as árvores milenares estavam morrendo, lentamente, mas estavam, será que ele teria ar para respirar nos próximos anos? Nunca havia se sentido tão frágil em toda a sua vida, tão abandonado. Será que adiantaria procurar por sobreviventes? Será que existiriam outras pessoas vivas? E se encontrasse alguém, o que diria, o que faria? Estariam elas escondidas em bunkers higienizados, tentando impedir que fossem infectadas? Teria dado tempo? Uma semana. Uma semana era muito pouco tempo. O céu a sua frente tornou-se escuro, a estrada não mais do que um feixe iluminado pela luz dos faróis, com os olhos de gato brilhando como estrelas no asfalto. A música continuava morando em seu ouvido. “Desta vez…”, “desta vez…”, ela dizia, “desta vez você pode ser quem quiser…” Ele seguia pela estrada sem acreditar em mais nada, aos poucos esquecendo quem era. A cada solavanco, escutava o corpo ao seu lado se mexer, cobrindo sua mente de tristeza. Como a perda era dolorosa, estar vivo com todos mortos a sua volta era o mesmo que estar morto com todos vivos a sua volta. Quase riu, quase gargalhou ao perceber que dependendo do ponto de vista, estar vivo era pior do que estar morto. Começou a pensar em vida após a morte, se estariam todos se divertindo em algum outro lugar, se encontrando em algum outro lugar enquanto ele estava lá, seguindo por aquela estrada. Quando uma árvore se aproximava, pensava em virar a direção, chocar-se contra seu tronco morto e encerrar sua viagem. Mas havia prometido, havia prometido levá-la até o mar. Lá decidiria o que fazer. Olhou para o lado e mais uma vez vislumbrou o rosto sereno que ela vestia. Parecia estar dormindo, um sono leve e agradável. Por um instante a imaginou acordando, colocando a mão em sua perna e sussurrando palavras divertidas em seu ouvido. “Da próxima vez vai ser diferente…”, ela havia dito. Quando chegou para apanhá-la, percebeu os traços da doença, a voz rouca, a respiração vacilante. Ela o abraçou por tanto tempo que ele pode perceber a mudança na forma das sombras. Ele não suportaria vê-la morrendo, não suportava mais ver tantos morrerem, caindo nas ruas, dentro de suas casas, caindo como moscas, enquanto ele respirava com tanta facilidade. Não suportaria vê-la morrendo. Repetia isso a cada minuto. Mas ela pediu que ele fosse pegá-la. “Venha me pegar.” “Me leve pra fora.” “Faça amor comigo”. Haviam parado no acostamento, onde já não existiam mais vivos, ela ainda viva, não sabia como. Ele a beijou com tristeza, com vontade, desejava ficar doente de uma vez por todas, mas não ficou. Ela o beijou com todo o amor que sempre sentira por ele, pelo único homem que amara por completo. Ele sentiu pela primeira vez que iria perder algo que nunca tivera. Sentiu pela primeira vez que aquilo deveria ser amor, mas reprimiu sua vontade com uma enxurrada de hipocrisia. Parecia tão fácil amar naqueles tempos. Ficaram tanto tempo se olhando que finalmente ele resolveu que era hora de partirem ou não chegariam a tempo. Seus olhos se encharcaram de lágrimas enquanto ela os olhava com ternura. Ela o beijou com força, de olhos abertos, sentindo o gosto salgado das lágrimas, olhando as profundezas daqueles olhos azuis. Ela sorriu contente, seu mar estava visto, salgado, azul e profundo, só não teve coragem de dizer isso a ele. Ele enxugou os olhos e seguiram viajem. “Vamos ver o mar”, disse ele. Ela concordou. Alguns quilômetros depois, quando o intervalo entre uma respiração e outra parecia interminável, ela olhou para ele uma última vez acariciando seu rosto. “Eu te amo.” Ela disse. Nada mais precisava ser dito. Seus olhos se fecharam lentamente, sua cabeça pendeu com suavidade para o lado e seu corpo tornou-se imóvel. Ele permaneceu olhando para frente, para aquela estrada, como se de alguma maneira, não olhar para ela fosse prolongar sua vida. Quando percebeu que ela havia partido, gastou as últimas lágrimas que tinha. Mas e o agora? Agora tudo não passava de memórias guardadas, lembradas diante da escuridão da noite, saboreadas ao cheiro de maresia. Desligou o som e pode ouvir ao longe o barulho das ondas. Havia chegado ao mar. Desligou o carro e os faróis. Aos poucos seus olhos foram se acostumando com a falta de luz. Na distância pode ver o declive que levava até a praia, pode ver a areia assumindo tonalidades cinza escuros, pontilhadas por estranhos pontos negros, grandes e pequenos, como seixos arredondados de um rio. Abriu a porta. Passou-lhe uma brisa mais forte e o cheiro podre do mar o acertou em cheio. Virou o rosto e vomitou. Não faria diferença vomitar no carro, mas vomitou na areia. Um espasmo o jogou de joelhos no chão, enquanto tentava não respirar pelo nariz, o cheiro sólido aos poucos foi se tornando algo mais comum. Nunca seria comum. Engoliu em seco, respirou fundo pela boca, levantou-se e olhou o mar com olhos ainda mais adaptados ao escuro. Os pontos pretos, as pedras redondas que vira, agora eram mais visíveis, possuíam caldas, nadadeiras e apodreciam. Percebeu que o oceano também estava morto, baleias, peixes, tubarões. Tudo em uma semana. No terceiro dia ainda havia televisão, ainda havia cientistas tentando descobrir a origem do vírus que se propagava pelo ar, pela água, pelo sangue, de todas as maneiras possíveis. Havia matado insetos, pássaros, animais domésticos, logo começou a matar crianças, velhos, mulheres, homens. “Nunca vimos nada parecido” disse um médico de meia idade, as feições vermelhas e suadas, segurando a tosse. No quarto dia já não tinha mais televisão. Quando saiu para pegá-la, foi observado por poucos olhares moribundos e desesperados e acabou tendo de fingir que tossia. Teve medo de ser atacado por estar saudável, teve medo de morrer antes de vê-la. Agora não tinha mais ninguém para matá-lo. Deu a volta no carro e abriu a porta. O corpo dela pendeu para fora, mas ele a segurou. A segurou pelos ombros e a puxou. O rigor mortis a deixou com as pernas dobradas, a cintura torcida. Ela estava tão leve, tão frágil. A levantou com cuidado, a segurando com os dois braços enquanto descia o barranco. Chegou próximo ao mar, mas teve de parar. O cheiro era forte demais, as ondas eram espumadas e viscosas, como se aquilo fosse o maior esgoto do mundo. Por um instante, sua mente agradeceu por ela não estar viva para presenciar aquilo, mas no mesmo instante se arrependeu daquele pensamento. Se ela estivesse viva, se ela estivesse viva ele até se jogaria naquela água fétida de tanta alegria. Lembrou da vez que viajou com seus pais, ainda pequeno. Foi apenas uma semana, mas quando voltou, seu aquário havia se transformado em uma vala escura de lodo, com pequenos peixes coloridos flutuando mortos por entre dejetos marrons. Um curto-circuito havia queimado o filtro d’agua. Uma semana, e tudo no aquário estava morto. Agora era o oceano inteiro, os céus, a Terra. A colocou na areia com cuidado. Em seguida, começou a juntar areia fazendo um monte, um encosto para apoiá-la. Puxou seu cadáver e a ajeitou de frente para o mar. Fez o mesmo para si com a areia e sentou-se ao seu lado. Segurou sua mão, enquanto imaginava o quão terrível seria fazer tudo isso se ainda estivesse claro, e o quão terrível seria quando amanhecesse. Pensou por que não havia trazido alguma arma. Lá estava ele, promessa cumprida. Olhando para o mar morto, ao lado do seu amor morto, esperando pela morte. O que viu ao longe, quase por detrás do horizonte foi um brilho azulado. Um instante depois e o brilho, do tamanho de uma bola de tênis, pairava diante dos seus olhos. Feixes elétricos saíram de seu interior, fazendo cócegas em seu peito. Seu coração ainda batia forte, sua respiração ainda era farta. O orbe luminoso vibrou. Subiu aos céus tão rápido que para os olhos dele, pareceu sumir de imediato. Ele não pensava em nada. Nada mais parecia estranho ou diferente. Só no que pensava era na mão que segurava, e como seria a cor do mar à luz da manhã. Foi quando viu uma estrela cadente, maior do que todas as estrelas cadentes que já vira. Fechou os olhos e fez um pedido, mesmo sabendo que não seria atendido. Quando tornou a abrir os olhos, a estrela não havia caído, mas crescia a sua frente. Não demorou muito para que ela se transformasse em uma outra luz, brilhante e quente, desta vez acompanhada de um vento forte e um som ensurdecedor e aguda. Ele fechou os olhos para evitar a areia que voava, teve de soltar a mão dela para tapar os ouvidos. Abaixou a cabeça esperando que aquilo, o que quer que fosse, sumisse. Quando sentiu que o barulho parrou e o vento passou, abriu os olhos novamente. Alguns metros ao seu lado, um objeto não muito maior do que um carro, se acomodava no chão de areia. Era liso, e possuía a forma alongada de uma gota cromada, com sua ponta apontando o céu. Seu instinto o fez levantar-se, olhar para aquele totem estranho como uma esperança velada. Sentiu uma brisa quente vindo do objeto, que ao som de um estalo metálico, dividiu-se em dois. A praia toda se iluminou com uma luz branca artificial saída de dentro do objeto. E de seu interior também saíram três criaturas. Para ele, pareciam desengonçadas morsas usando escafandros cromados. Possuíam pernas curtas, troncos largos sem braços e uma cabeça sem pescoço. Quando se aproximaram, ele viu claramente que vestiam uma grossa proteção sem dobras ou aberturas, com um enorme visor redondo no alto da cabeça. Pequenas luzes iluminavam o interior do visor, mostrando olhos estranhos e escuros, olhos que pareciam quase humanos, se não fossem amarelos. As três criaturas pararam à sua frente, como sombras gordas escurecidas pela luz branca que saia da nave, três recortes por sobre um quadro branco. Atordoado com o que via, ele pensou em correr, mas milésimos de segundos depois percebeu a inutilidade daquilo. O que acabou fazendo foi levantar as sobrancelhas e o braço abrindo a mão em um oi silencioso. Foi quando, da lateral de uma das criaturas, um conjunto de pequenos braços se abriu como um canivete suíço. De uma das pontas de um desses apêndices, um raio o imobilizou naquela posição. Não podia se mexer. A criatura mais a esquerda também ejetou um dos braços mecânicos e se aproximou lentamente. Possuía na ponta uma agulha que foi se alongando e se afinando em direção ao seu peito. Não sentiu dor nenhuma quando aquela enorme agulha penetrou seu peito, atravessou sua camisa, sua pele, seus músculos, seu externo e chegou até o coração. Sentiu sim uma sensação estranha, uma breve sucção que lhe causou uma leve taquicardia. Mas logo o seu coração voltou ao normal, pois tão rápido como entrou, a fina agulha se foi. Sua mente estava atordoada, mas com a clara percepção de que haviam tirado seu sangue. A criatura que se encontrava no meio das duas se aproximou lentamente. Carregava um dispositivo cilíndrico, ao mesmo tempo transparente e cromado, que conectou a ponta da agulha. Rapidamente o cilindro tornou-se rubro, encharcado de sangue. O tempo parou, os olhos das criaturas emitiam uma angústia escondida, uma atenção sem piscar. Aos poucos, o cilindro foi assumindo uma coloração jade, um verde tão repleto de esperança que acertou um soco de saudade em seu estômago. Por um instante, ele teve certeza, como nunca teve certeza na vida, de que os olhos das criaturas sorriam. O raio invisível desapareceu, e ele caiu de joelhos. Sentiu uma leve dor no peito. Levou a mão o coração, mas não havia sangue ou sinal de ferimento algum. Não sabia se isso era bom ou mal. Preferia ter sido mortalmente ferido, ou ter tido seu sangue completamente sugado. Quando olhou novamente, as criaturas o observavam com olhos tristes. A mesma esfera azulada desferia choques no corpo inerte dela, sem, entretanto, vibrar com a intensidade da vida. Ele sentiu que elas sabiam, sabiam que só ele havia restado. A criatura da esquerda levantou um dos seus braços preênseis, fazendo o mesmo gesto que havia recebido dele, mas como um último gesto de despedida. Finalmente lhe deram as costas, voltaram para a nave segurando juntas aquele cilindro como se fosse a coisa mais preciosa do Universo. A nave se fechou e segundos depois emitiu novamente aquele som agudo, o vento explodiu e a nave disparou em direção aos céus, deixando uma cratera na areia e o jogando a metros de distância. Ele não sabia quanto tempo ficou deitado na areia, na mesma posição que caíra, vendo a nave virar um ponto pequeno no céu, mesclando-se com as estrelas da Via Láctea e finalmente sumindo para sempre. Sua mente pensava em conjecturas, em coisas óbvias. Só ele havia sobrevivido ao vírus, só ele estava vivo. Ele deveria ser especial. Ele deveria ter alguma coisa diferente, fosse seu DNA, um anticorpo qualquer, uma mutação qualquer. Ficou imaginando se essas criaturas teriam soltado o vírus na Terra. Um campo de provas na esperança de que alguma criatura sobrevivesse e lhes desse uma cura. Ou quem sabe o vírus estivesse migrando, varrendo o universo com seus dedos mortais. Uma peste negra galáctica que havia matado todas as criaturas do planeta, que podia infectar qualquer ser vivo, plantas, insetos, animais, peixes, alienígenas… Quantos planetas havia infectado, quantos seres vivos já havia assassinado? Queria imaginar um final feliz, que seu sangue deu a cura para bilhares de civilizações a beira da extinção. Levantou-se e percebeu que ela estava caída e coberta de areia. A limpou com cuidado, a colocando de volta na posição anterior. Sentou-se ao seu lado novamente, segurando sua mão com ainda mais força. Só ele estava vivo, ele e pelo menos três estranhas criaturas do espaço. Olhou para o perfil do rosto dela, os olhos fechados, olhando em silêncio para o mar. “Estou grávida”, ela disse depois de fizerem amor pela última vez. Ele começou a chorar um choro limpo, leve, profundo. Talvez por isso ela tenha sobrevivido mais tempo do que os outros, talvez por isso ela tenha sido a última a morrer. Ela tinha o sangue dele correndo em suas veias, DNA dele se multiplicando em seu útero, talvez anticorpos transmitidos pela saliva de seus beijos. Quem se importava? Não tinha sido suficiente para impedir que ela e o bebê também morressem, pelo menos tinha adiado suas mortes, permitido que tivessem tido aqueles últimos momentos juntos. Ele percebeu que estar sozinho não era solidão maior do que se sentir incompleto. Solidão de saber o que havia perdido, de saber que nada mais iria voltar a ser como era. Solidão não era ser o último ser vivo em um planeta morto, solidão era perceber que sempre se sentira sozinho e que nunca tivera a capacidade de simplesmente sentar-se ao lado dela e perceber que na verdade, nunca estivera. Que a tinha, que tinha toda uma vida maravilhosa pela frente. E mesmo agora, naquele momento, também não estava mais sozinho. Três criaturas carregando um cilindro recheado com seu sangue eram prova disso. Imaginou se seria visitado novamente. Talvez alguém resolvesse vir visitá-lo. Agradece-lo por ter salvo seu planeta, sua esposa, seus filhos, o Universo inteiro. Até lá ficaria sentado ao lado dela. Sua mente vazia, seus olhos secos. Algumas horas depois e o Sol veio, o mar era negro, o ar que respirava grudava na sua garganta um gosto pior que a morte. “Da próxima vez”, ele cantarolou, “Da próxima vez vai ser diferente”. E lá ele ficou. Junto dela.
Olhando o mar.
Rodapé
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Edição e capa por Gabriel Boz.
Conto Olhando o Mar: Gabriel Boz