Intro
É muito bom bancar o Grande Projetista e fazer o que bem quiser com sua criação. É muito bom ter total controle criativo e estrutural do seu projeto. Mas também é muito bom poder compartilhar e dar espaço para outras vozes e literaturas.
Esse Revista Eletrônica nasceu com anseios bem definidos, aqui me transformo em um explorador que busca, dentro e fora de mim, por algo além do ordinário, por um senso de maravilhamento.
Estarei eu preso a um eterno processo de buscar reproduções de mim mesmo, como um hermafrodita literário? Ou o que quero mesmo é despertar novas asas para que outros escrevam seus próprios sonhos e os compartilhem comigo?
Eu queria vestir novas asas de vez em quando.
Nessa edição não temos resenha. Sigo na leitura de Perdido Street Station, mas leio vários livros ao mesmo tempo. Terminei o livro “A Menina da Montanha”, que sim, me levou para além das montanhas ásperas de Idaho, mas sendo um livro de memórias de uma jovem Norte Americana que só pôs os pés em uma escola aos 17 anos, não é um livro de gênero fantástico. Quase poderia ser.
Mas em troca, despejo dois contos inéditos que muito tem a ver com o que escrevi acima, e também se conectam com o nosso momento pandêmico atual, onde faltam abraços e viagens.
Três Adevas
O elevador estratosférico até a Estação Lunar de lançamento era bastante espaçoso, mas os três hermafroditas sentaram-se juntos, como se já estivessem sentindo falta do contato com outros indivíduos geneticamente diferentes. Cada um dos três expressava em sua constituição física, cor de pele, até mesmo nas vestes, um pouco do que sua missão significava. Foi o mais esguio, de olhos grandes e pele púrpura, o primeiro a quebrar o silêncio.
— Para onde serão mandados?
O mais grandalhão foi o primeiro a responder.
— Sou o Adeva de Zarkon.
Os outros dois entreolharam-se. Zarkon era notícia há mais de dez anos, desde que o sistema planetário fora descoberto. Era o planeta mais similar com a Terra jamais encontrado, a não ser pela gravidade levemente mais forte, o que explicava a constituição física mais avantajada de seu Adeva.
— Sou o Adeva do desértico Larkia. — Respondeu o outro com um tom de desgosto.
O grandalhão sorriu.
— Larkia é riquíssimo em platina. Suas cópias terão muita chance de prosperar e enriquecer antes do dia da Integração. Disse o Adeva de Zarkon.
O Adeva de Larkia se desarmou. Não era hora para fatalismo ou inveja. Consentiu com um leve movimento de cabeça, sorriu para os dois e permaneceu em silêncio.
“Dia da Integração. Data Comemorativa em que um sistema planetário povoado por um Adeva é oficialmente integrado ao conjuntos de Sistemas conectados a Terra Mãe Primária.”
— Dizem que Zarkos é um paraíso. – Continuou o Adeva de pele púrpura.
— Sim. Teremos pouco trabalho pela frente, já que o Planeta será mantido como paraíso natural e turístico. Nada de escavar minas, construir refinarias ou fazer grandes terraformações.
Os dois outros Adevas concordaram.
O elevador parou. Haviam transposto o piso do hangar principal, abaixo da grande cúpula da Estação Lunar, próximos as espaçonaves de lançamento. Por detrás da estrutura envidraçada da Cúpula, podia-se ver dois foguetes classe 25 placidamente posicionados na frente de um gigantesco Disco Cidade classe 1 com centenas de metros de diâmetro. Os três olharam admirados, mas somente dois ficaram realmente surpresos.
— É o seu transporte? Um Disco Cidade? Qual o seu nome? — Perguntaram os dois Adevas ao mesmo tempo.
O Adeva de pele púrpura não respondeu de imediato. Sua missão era um segredo bem guardado pelo Grande Projetista e Primeiro Adeva da Terra Primária. Mas lembrou que logo após seu lançamento, a notícia seria espalhada pelos quatro quadrantes da Via Láctea.
— Peço que mantenham segredo por enquanto, mas sou o Adeva de Andrômeda.
O rosto do outros dois se petrificou.
— Você será enviado para povoar outra galáxia? Será isso possível? Levaria trilhões de anos. — Exclamou Larkia incrédulo.
O Adeva de Andrômeda Riu.
— Talvez, mas quando nossas cópias se encontrarem no dia da Integração, lhes direi qual foi a experiência mais extraordinária que terei vivenciado. — Disse sorrindo.
Os três trocaram olhares, sorrisos e despedidas. Partiram, caminhando para seus respectivos transportes.
Momentos depois, as espaçonaves cingiam o espaço negro deixando para trás a Lua e sua Terra Mãe.
Dentro dos foguetes, os hermafroditas Adevas de Zarkos e Larkia começavam o processo de reprodução solitária que em nove meses geraria uma criança cópia. Até o fim da viagem, chegariam aos seus respectivos planetas com uma força tarefa de cerca de dez indivíduos. Mas o Adeva de Andrômeda era diferente, foi geneticamente engendrado de forma diferente.
Ao chegar no centro da espaçonave, entrou em uma gigantesca piscina cheia de um fluido viscoso. Submergiu lentamente, acariciando sua barriga que tremia em pequenos espasmos. Ao invés de uma única criança, sentia o leve movimento dos cem ovos que se desenvolviam em seu interior e que em breve iria depositar no fundo da piscina nutritiva. Cem cópias nasceriam em poucos dias, e cada uma delas, geraria outros cem. Até chegar na Galáxia de Andrômeda, teria alguns bilhões de companheiros, exatamente iguais a ele, prontos para embarcarem nos casulos do Disco Cidade e se lançarem por todos os cantos da nova galáxia.
Andrômeda nunca mais seria a mesma.
4 Bilhões de anos se passaram.
Era o dia da Integração. Mas essa integração era especial. Era a união de duas Galáxias.
225.327.062.020 era o número de Adevas que se acotovelavam dentro da grande esfera planetária de observação, no centro das Galáxias. Cada um deles, um único representante de seu planeta. No centro, flutuando em uma plataforma plana e esférica, a atual cópia do Grande Projetista inicial e Adeva da Terra Primária vestia um terno de camurça azul marinho com gravatas xadrez e abotoaduras de ouro. Seu rosto era sereno, olhos profundamente azuis, pele morena e nenhum cabelo. Ao seu lado, com uma túnica púrpura que brilhava com uma noite estrelada, pele púrpura e enormes olhos amarelados, desproporcionais para sua cabeça, uma cópia do Adeva de Andrômeda sorria efusivamente.
O centro das duas Galáxias, após a colisão inicial, estavam efetivamente terminando de se fundir. A Luz era avermelhada, dispersa, e envolvia todos dentro daquela esfera transparente e flutuante. Algum tempo depois, os halos desiguais se encaixaram, a esfera central da Galáxia de formou e se expandiu transbordando luz através de tudo e de todos. A integração estava completa. Os dois Adevas se olharam e se abraçaram. Todos se abraçaram. A nova Galáxia foi batizada de Grande Berço.
A comemoração que se seguiu foi animado. Os Adevas de Zarkos e Larkia se encontraram e se abraçaram com força. A história de seu lançamento conjunto com o Adeva de Andrômeda permaneceu em suas linhagens pelos últimos 4 bilhões de anos. Conversavam animadamente quando viram ao longe o Adeva de Andrômeda. Acenaram para ele timidamente. Ele os viu, se aproximou lentamente e parou.
— Adevas de Zarkos e Larkia, que prazer reencontrar vocês. Esse reencontro é sem dúvida, o momento mais extraordinário que já vivenciei.
Os três riram e se abraçaram. Um abraço de 4 bilhões de ano.
Enquanto isso, o Grande Projetista e Adeva da Terra Primária apresentava para alguns curiosos, uma criança de rosto plácido, a pele mais escura que a noite, com manchas azulados e brilhantes que dançavam pelo seu corpo. E cada vez que um feixe azulado se movia pela sua pele áspera, iluminava minúsculos orifícios que iriam produzir e liberar bilhares de esporos aos quatro cantos da existência. A criança tinha olhos profundos e brilhantes, que rodavam em espiral enquanto ele falava com uma voz pura, suave e eterna.
— Olá, prazer em lhes conhecer. Sou o Adeva Universus.
Asas
Toda vez que eu acordo, eu sinto vontade de esticar minhas asas e visitar algum lugar distante.
Largo meu celular e vou até o banheiro, onde meu espelho portal espera por minha respiração embaçada. A pedra do piso do banheiro tem uma forma estranha, lembra a cabeça de um pequeno duende. Eu me sento na tampa do vaso e converso com ele por alguns minutos. De repente ele inicia um monólogo sobre a toxicidade das mariposas, como elas não são atraídas pela luz, mas na escuridão, são atraídas pelo frescor da saliva. A pedra do piso com a forma de uma cabeça de duende me alerta para não dormir de boca aberta. Eu então a fecho e me levanta em direção ao espelho do banheiro. O que eu vejo do outro lado é uma planície verde e brilhante, emoldurada por nuvens densas que deixam passar silvos de luz na distância do horizonte entrecortado. Como um prego de bronze encravado na face vegetal do cadáver de um gigante transformado em monte, a Torre de Todellinen corta a realidade em luz e sombras. Eu estico minhas asas e mergulho pela parede gelada do vidro reflexivo escorregando para dentro do verde esmeralda daquela manhã ensolarada. O que eu sinto em seguida é o bastão de um caçador acertando seu nariz.
Eu acordo em uma masmorra escura, coberta de correntes vivas que apertam minhas costelas a cada respiração. As pedras a minha volta começam a marcar a hora que vão me dar um outro aperto, mais frio e áspero. Preso e amarrado nessa cela, só me resta navegar pelas aventuras e voos que permanecem vivos em minha mente, como da vez em que a Múmia de Antikala tentou me dar um beijo mofado, ou quando os mosqueteiros de Bahram me perseguiram com navalhas nos dedos. Lembro das praias azuis de Urdinak com seus corais flutuantes, me vejo escapando das grutas intestinais do Verme Honua depois de ter roubado seu apêndice de cristal, apareço montado em um Dragão de Ferro na batalha de Porto Barba e depois caindo em um redemoinho de areia, perto do Templo de Keusik. Estou preso, mas lembro que o inquisidor de Todellinen não é nada comparado. A porta se abre e é ele que entra, vestindo seu manto de espinhos e apontando para meu coração. Diz que meu tempo acabou. Enfia dois dedos gelados em meu peito e retira as asas douradas que faziam minha alma voar.
Eu pisco os olhos.
Me vejo refletido no espelho, de frente à dois olhos solitários flutuando em lágrimas. Olho para o chão e as marcas no piso são apenas marcas no piso de ardósia. A simples manhã me incomoda. A tarde me fragmenta em pedaços ainda menores. Eu sei que agora tudo é real. A noite eu tento dormir. Fecho meus olhos, sinto uma respiração no rosto, um sussurro próximo, um toque na nuca, um hálito úmido. Pelos meus olhos fechados manchas vermelhas dançam e desaparecem. Respiro com a boca aberta. Ouço um farfalhar de asas. Eu rezo para que não seja uma Mariposa Bruxa, mas sim novas asas douradas atraídas pela minha tristeza, voltando para salvar minha alma. Quando abro os olhos, descubro que sou outra pessoa, que deixei de ser eu. Agora? Eu sou você.
Toda vez que você acorda, você sente vontade de esticar suas asas e visitar algum lugar distante. Você larga o seu celular e vai. Vai? Me diga. Para onde você vai?
Rodapé
Você acabou de ler mais uma edição de GBOZ.
Edição, capa e contos por Gabriel Boz.
Conto 1: Três Adevas
Conto 2: Asas
Sobre a imagem de capa. Inspirada no conto dessa edição, temos o Adeva de Andrômeda contemplando seu destino.
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